SÍNTESE DO TEXTO: DA DESIGUALDADE DE CLASSE À DESIGUALDADE DE
CONHECIMENTO
* Nico Stehr RBCS Vol. 15 no 42 fevereiro/2000
O autor sugere que o
conhecimento tem um papel cada vez mais importante na formação da natureza e da
estrutura da desigualdade social em nossa sociedade moderna. Ao pensarmos a
historia, o conhecimento teve sempre um papel importante na determinação de
certos aspectos da desigualdade e em sua avaliação por parte da sociedade. Por
exemplo, a capacidade de ler e escrever na língua dominante de uma nação tem
tido um papel tão importante nos sistemas de desigualdade quanto outras
habilidades culturais o que importa discutir não é apenas como a importância
crescente do conhecimento afeta, caso o faça, os padrões de desigualdade
social, mas também por que o conhecimento é “capaz” de substituir o que tem
sido há séculos.
A respeito das mudanças na
estrutura da sociedade, pode-se afirmar que o conhecimento, da desigualdade
social, adquiriu nas sociedades modernas uma importância especial para os
padrões de tal fenômeno. Pelo menos dois grandes grupos de mudanças societárias
podem ser usados como provas da emergência do conhecimento como princípio de
estratificação. As condições socioestruturais, e sociopolíticas, que podem ser
tomadas como fundamento da emergência do conhecimento como princípio de
estratificação diz respeito ao relativo declínio da importância mediata e
imediata da economia para os indivíduos e as famílias. Refiro-me à diminuição
da subordinação material direta dos indivíduos e das famílias a atividades
centradas na economia de mercado, principalmente em relação aos seus papéis
ocupacionais e, portanto, de sua dependência do que muitos ainda consideram ser
seu papel básico de atores econômicos.
À dinâmica da economia em
geral e do mercado de trabalho em particular. A estrutura de direitos coletivos
ou agregados nas sociedades modernas depende, é claro, da disponibilidade de
emprego remunerado, e a quantidade de trabalho agregado que será disponível e
crucial para a sustentação dos direitos sociais no futuro. Ao mesmo tempo, o
efeito dos estilos de vida na estrutura da economia se multiplica.
A grande mudança
estrutural que acompanha e alimenta o decréscimo da importância da economia é a
redução do grau em que a sociedade moderna, relativamente a muitas atividades
que enumerarei adiante, perdeu os centros anteriores de autoridade e, portanto,
os padrões de conduta exemplares ou rigidamente limitadores. Não obstante tudo
o que se possa dizer sobre a expansão da globalização ou da homogeneização, as
sociedades modernas não têm mais uns poucos partidos político, pelo menos nos países em que a legislação
eleitoral não desestimula a multiplicação de partidos, nem padrões familiares,
sindicatos, estrutura de gênero, religiões, disciplinas científicas, grupos
étnicos, estratos sociais, comunidades, cidades, estruturas corporativas
coerentes e/ou dominantes.
A relação entre fatores
cognitivos e materiais da desigualdade social se inverte: o conhecimento é que
comanda o bem-estar material, seus fatores e sua extensão. Mesmo que seja visto
como simples meio ou fundamento da desigualdade social na sociedade moderna, o
conhecimento deve ser pelo menos conceituado como um instrumento “metanível”,
capaz de afetar a aquisição, defesa e controle de meios mais tradicionais de
estratificação. De um ponto de vista material, mas não somente dessa
perspectiva, o conhecimento deveria ser visto como um recurso que isola e
protege os indivíduos e as famílias do impacto imediato dos caprichos do
mercado e da coerção. Nas “sociedades do conhecimento”, a desigualdade torna-se
um fenômeno social muito menos óbvio, concreto e visível do que na sociedade
industrial. A escolha e a definição do conhecimento como uma “variável focal”
da desigualdade também indica que seus pré-requisitos e suas consequências
práticas tendem a ser, por enquanto, menos definitivos e consensuais do que
outras dimensões da desigualdade, como renda, educação e ocupação, e tendem a
resultar em estruturas de desigualdade menos firmemente estabelecidas. Como
recurso para gerar e manter padrões de desigualdade, o conhecimento é mais
tolerante à ambiguidade, ao dissenso, a disputas não resolvidas e padrões
essencialmente questionáveis. Por essa razão, trato muito menos dos resultados
de processos alocativos, do que da capacidade de se auto afirmar ou de atingir
diferentes fins almejados em contextos sociais muito diversificados.
A questão está, então, em
saber como essa concepção do conhecimento complementa ou se diferencia das
perspectivas recentes sobre a desigualdade social que a entendem como um jogo
de representações cognitivas de diferenças sociais e uma luta para dominar os
discursos e as estratégias pertinentes às classificações da estratificação. Embora
essa abordagem aumente consideravelmente nosso entendimento das muitas facetas
atuais da reconstrução de categorias de desigualdade, é provável que esta
continue a ser uma visão (funcionalista) que não se preocupa com as condições
que capacitam ou com os aspectos constitutivos da desigualdade, mas se
restringe aos resultados ou produtos de disputas classificatórias. Concentrar a
análise no conhecimento implica voltar o foco para as novas bases da
desigualdade.
Trata-se, em primeiro
lugar, de saber que possibilidades de lidar com novos tipos de disputas
classificatórias são proporcionados pelos recursos cognitivos da ação. E até
que ponto esses recursos têm de estar socialmente distribuídos para que esse
argumento sobre a desigualdade não se limite a uma elite na sociedade.
A desigualdade social
torna-se uma configuração heterogênea e dependente do contexto. A capacidade de
pôr em prática mecanismos e medidas de proteção é uma questão de competência
especializada, que habilita os atores a mobilizar o acesso a um diferencial de
conhecimentos para assegurar, por exemplo, que o patrimônio e os direitos
legais de uma pessoa estejam protegidos contra desvalorizações estruturais ou
desmesurados.
A capacidade de
preparar-se para desafios é um elemento crucial da estratificação baseada no
conhecimento. Por exemplo, a faculdade de contestar as práticas dos
especialistas, do Estado ou das grandes corporações é um importante atributo do
conhecimento como capacidade de constituir desigualdades. Neste mesmo sentido,
adquire importância a capacidade de escapar à vigilância e de abrir espaços de
autonomia autorregulada, com base no aproveitamento de instrumentos que muitas
vezes são vistos como meios de aumentar a fiscalização. A capacidade de
exclusão é outro aspecto da estratificação mobilizável a partir de diferentes
bases de conhecimento. Estou pensando nas estratégias que permitem distribuir
de modo diferenciado certos riscos da sociedade moderna como, por exemplo, nas
áreas de segurança, exposição ao conflito ou à violência, incidentes que
colocam a saúde em perigo e outras. Pela mesma razão, o enorme crescimento da
“economia informal” na maioria dos países de desenvolvimento avançado, isto é,
todos os tipos e formas de transações econômicas fora do controle do Estado e
do sistema jurídico, a despeito de serem ou não legal, podem ser tomados como
uma das consequências da ascensão do conhecimento como princípio de
estratificação.
Em termos mais gerais, a abrangência das
competências sociais corresponde a recursos estratificados para ter controle
sobre a própria vida; por exemplo, a saúde, a própria situação financeira, a
vida pessoal, as aspirações, a carreira, a segurança em longo prazo, ou a
capacidade para encontrar e obter ajuda para realizar essas tarefas, são
efeitos gerais do controle diferenciado de certas bases relevantes de
conhecimento.
A maior parte das teorias
sobre a desigualdade social permanece estreitamente relacionada com o processo
de produção, sua organização e seus resultados. Além disso, a linguagem usual
dessas teorias continua presa a um imaginário em que os agentes aparecem como
criaturas inflexíveis, enredadas em estruturas de desigualdade de objetivo
único, que impõem seu ritmo a indivíduos ou grupos passivos, muitas vezes por
várias gerações. Já que os regimes de desigualdade são interpretados como
inflexíveis e em grande parte unidimensionais, a estratificação é considerada
abrupta e as consequências das desigualdades materiais são vistas como
duradouras; assim, o discurso sobre a desigualdade tende a lidar com a coerção,
ou seja, com as restrições, a vulnerabilidade e a efetiva impotência dos indivíduos
e grupos perante os poderosos. Mas as novas realidades exigem uma nova
linguagem que deveria acentuar a ação, a maleabilidade, a flexibilidade, a
múltipla finalidade dos recursos, a volatilidade, a heterogeneidade das
estruturas sociais. Cabe também indagar até que ponto os indivíduos e grupos
têm poder para usar e transformar essas estruturas, uma vez que se tenha
produzido uma significativa redução da vulnerabilidade às forças da
desigualdade.
Portando, a condição que
possibilita obter bases de ação mais amplas e mais numerosas é o conhecimento,
ou seja, um conjunto de competências sociais de acesso mais geral, cujo impacto
sobre as estruturas sociais de desigualdade acelera as oportunidades dos atores
de reformular as construções sociais.
Autoras: Patrícia Aparecida de Almeida e Natacha Andrade Barboza
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